quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Reparação poética

Não há mais lugar para a poesia neste mundo. Não enquanto existirem advogados e o politicamente correto. Depois de longas batalhas judiciais, o Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa a uma associação de poetas que me acusou de difamar os que têm por ofício fazer versos.
Vocês devem se lembrar do poema que serviu para a acusação:

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Esse episódio vem me causando muito desassossego. Realmente, é desafiador fazer poemas dentro desses novos requisitos sociais. Mas não me resta outra escolha. Até porque a sentença me obrigou a reescrever o primeiro verso, que causou tanta celeuma.

Alguns poetas, no intuito de transmitir certos sentimentos, podem, de certa maneira, simular algum desconforto ou dor que eles realmente não estão sentindo. Às vezes nem é por mal. É inconscientemente, mesmo. Só que essa simulação – repito que isso pode acontecer com alguns poetas, e não com a maioria – pode ser tão perfeita, mas tão perfeita, que esse desconforto ou dor passam a ser sentidos de verdade verdadeira por quem fabricou aqueles sentimentos não fabricáveis. Essa dor, inclusive, se persistir, deve ser examinada por um médico especializado. Pois bem: aquilo que tinha começado como uma dor de mentirinha e que depois virou uma dor de verdade, no fundo dos fundilhos era uma dor que já existia como dor, sendo que em nenhum momento o tal poeta dolorido sequer pensou em provocar dor em mais alguém a não ser nele mesmo. Coitado.

Reconheço que perdeu um pouco da graça, mas ficou mais popular, pode até ser adaptado para uma mini-série da Record.